Uma tecedeira de cantigas chamada Maria Antónia Esteves
Uma tecedeira de
cantigas
chamada Maria Antónia
Esteves
Muito haveria a dizer sobre esta
cantora e etno-musicóloga, que tem talento, sensibilidade e bom gosto. Porque
não é impunemente que se é herdeira de uma tradição musical e poética com
raízes fundas e profundas nos cantares de gesta medievais e na melhor poesia
trovadoresca. Porque não é impunemente que se é trisneta de baleeiros que
balearam até ao Oceano Árctico. E porque não é impunemente que se é sobrinha do
grande folclorista açoriano Padre José Luís de Fraga, e se cresceu no seio de
outros familiares para quem a música constituiu sempre um compromisso de
paixão.
Depois de Açores (45 r.p.m., 1981),
Manjericão
da Serra (LP, 1984), Canto do Prisioneiro (LP, 1988) e Com o
Rosto a Este Vento (CD, 2005), temos agora Entre França e Aragão (2014)
como título do mais recente CD de Maria Antónia Esteves e que, a meu ver,
constitui uma das mais porfiadas experiências musicais dos últimos anos em solo
pátrio, sendo que, nos Açores, não há precedentes de um disco com esta
temática. Um disco com boa apresentação gráfica e com um booklet que nos dá informação muito precisa sobre a origem, a
história e outras incidências dos temas recolhidos.
Com a sua voz telúrica, bem timbrada,
límpida e expressiva, superiormente acompanhada à viola de arame (ou viola da
terra) por Miguel Pimentel, que é também autor dos eficazes e eficientes
arranjos para viola(s), Maria Antónia Esteves canta sentimentos, emoções e
estados de alma. Com expressão lírica e grande serenidade.
Ela canta errâncias marinheiras e
vivências baleeiras (“Um Marinheiro”, recolhida na ilha das Flores pelo padre
José Luís de Fraga), evoca o amor e a dolência nostálgica da alma açoriana (“O
Meu Bem”, por ela recolhido na ilha de São Jorge, ”Cabeçal onde me deito”,
recolhida na ilha de São Miguel por Miguel Pimentel, e “Lindos Amores”, recolha
de Manuel José Tavares Canário em São Miguel), havendo a destacar a relação que
a cantora/recolectora estabelece entre melodias/danças do folclore açoriano e
as suas congéneres do Sul do Brasil (Rio Grande do Sul e Santa Catarina),
nomeadamente “Ratoeira” e “Terno de Reis”, temas que, sendo de origem açoriana
porque levados para o Brasil por colonos açorianos no século XVIII, foram naquelas
regiões recolhidos. E aqui muito haveria a dizer sobre as marcas da música
criada nos Açores que a diferencia da matriz portuguesa, flamenga, americana,
africana ou brasileira, ou seja, o fenómeno da adopção, adaptação, alteração e
criação local de toadas populares açorianas – matéria sobre a qual me venho
debruçando nas últimas três décadas.
Mas a cereja em cima do bolo deste
disco é mesmo a faixa “A Donzela Guerreira”, versão recolhida na ilha de São
Jorge, tratando-se de um dos romances tradicionais mais populares nos países do
sul da Europa, e que dá conta da história de uma jovem que vai combater a
guerra “entre França e Aragão” fazendo-se passar por homem.
E depois há essas duas preciosidades
melódicas e harmónicas que são o “Fado Maria da Luz” (recolhido por Maria
Antónia Esteves na ilha de São Jorge) e “Fado da Meia Noite” (recolhido por
Miguel Pimentel em São Miguel). Por isso mesmo, o que escutamos neste disco não
é folclore, mas música autêntica e profunda, toada intemporal e universal.
Em todas as cantigas do disco, a voz
de Maria Antónia Esteves funde-se, em comunhão espiritual e em supremo diálogo,
com o toque rasgado e puro da viola de Miguel Pimentel (filho de Manuel Moniz
que foi igualmente notável tocador de viola), cuja excelente técnica e extraordinária
capacidade solística estão bem patentes em outros três temas: “Pezinho”, “Chamarrita
do Meio” e “Sapateia”. Aliás, este disco é também uma declaração de amor e de
dignificação à nossa viola da terra, às suas sonoridades, capacidades e
potencialidades. (De resto não é difícil tocar viola da terra, o que é difícil
é tocá-la bem…).
De grande qualidade, este disco Entre
França e Aragão (viagem musical e poética feita a partir dos Açores mas
com rotas traçadas a pensar noutros espaços universais, ou seja, com música que
parte da ilha para o mundo e que, do mundo, regressa à ilha) cumpre um
verdadeiro serviço público. Por isso, mas não só por isso, deve merecer a nossa
melhor audição.
Uma coisa é certa: na solidão
comprazida de São Pedro do Nordestinho, na ilha de São Miguel, a trovadora Maria
Antónia Esteves, sorriso radioso e sereno (calma por fora mas criativamente
muito agitada por dentro), continuará a dar voz e expressão à alma de um povo.
Porque é esse o seu destino. Porque é essa a sua missão. E porque é essa a sua
forma de perseguir caminhos de sonho e felicidade.
Horta, 31 de Agosto de 2015
Victor Rui Dores
Horta, 31 de Agosto de 2015
Victor Rui Dores
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