Desde
sempre houve música em minha casa. Meu pai cantava, meu tio cantava, minha tia
não cantava, mas era professora de piano, minhas primas cantavam, até minha avó
e minha mãe também cantavam. Muitas foram as cantigas que ouvi cantar, por
vezes retiradas de velhas folhas pautadas e manuscritas, outras de livros ainda
mais velhos. Muitas eram (hoje sei-o) de proveniência erudita, árias de óperas
conhecidas, por exemplo (lá em casa havia uma preferência especial por
Donizetti; eu própria cheguei a cantar trechos de L’ Elisir d’amore, por impossível que isso hoje me pareça…) mas
outras eram cantos do povo que meu tio e meu pai ou conheciam do seu próprio passado,
ou pesquisavam, recolhiam e registavam. Entre todas uma agradava-me
especialmente, talvez porque no dia em que primeiro a ouvi meu pai me sentara
no seu colo, enquanto a cantava como se fosse um embalo. A suave cadência, e,
quem sabe, a vida corajosa da Barquinha Feiticeira, que eu logo imaginei como
uma sereia diferente - aquela que enfrentava os perigos sem nome do mar para
salvar os marinheiros perdidos, em vez de os arrastar consigo para o abismo,
como faziam as suas perversas irmãs, deixaram marca indelével no meu íntimo.
Não se sabia quem escrevera as palavras nem quem compusera a linda melodia, mas
de ambas o povo se tinha apropriado, o que transformava a “barquinha” numa peça
folclórica – o que só muito mais tarde vim a perceber. Para mim, então, era
apenas a linda cantiga...que eu pedia a meu pai para cantar outra vez.
Os
anos passaram. Aprendi música, e a cantar, com meu pai; aprendi a admirar meu
tio, notável folclorista. Estudei as suas recolhas, e as recolhas de outros. Recolhi
eu própria. Das músicas folclóricas dos Açores passei às do Continente
português, das portuguesas às europeias. Das açorianas, de novo, às americanas,
africanas e brasileiras. Um dia entendi que era preciso e urgente divulgar. E é isso que faço desde então…
…..
“Entre
França e Aragão” é o quinto título da minha diminuta discografia, que em 1981
se iniciou com o 45 r.p.m. “Açores”, que integrava precisamente a Barquinha Feiticeira de que
falei atrás, e um outro romance, Tinha um Rei uma Filha – e desta forma tão
modesta comecei a apresentar ao mundo um folclore que poucos conheciam, e que
alguns - talvez condicionados pelo repisar constante das poucas peças que nos
habituámos a considerar como “folclore” - até sentiram dificuldade em encarar
como tal. Em 1984 e 1988 surgiram os LPs “Manjericão da Serra” e “Canto do
Prisioneiro”, em que pude continuar a divulgar a minha própria forma de ver e
sentir a música tradicional da terra onde nasci, no primeiro de ambos já incluindo
o instrumento açoriano por excelência, a viola de arame açoriana ou viola da
terra, que nunca mais se apartaria das minhas
realizações.
E
só em 2005 surgiu o primeiro cd, “Com o Rosto a Este Vento”, em que abordei a
temática dos nossos cantos marítimos, que tão esquecidos foram por muitos dos
nossos recolectores, sublinhando as relações existentes entre os mesmos e
cantos similares de outros povos.
Surge
agora o presente trabalho, também editado em cd, onde apresento dois temas
folclóricos brasileiros, do estado de Santa Catarina, relacionados com o corpo
tradicional açoriano de onde terão derivado, além de chamar a atenção, mais uma
vez, para os recolectores do passado e apresentar recolhas de minha própria
autoria.
Na
simplicidade dos acompanhamentos instrumentais, onde a viola reina desta vez
como única senhora, pretendo recriar, até certo ponto, a ambiência dos serões
de antanho, em que perante as mãos habilidosas - muito embora calejadas - do
tocador, uma voz se levantava, mais uma vez repetindo as palavras ouvidas aos
avós.
Não
o fiz sozinha, porém. Tive companhia nesta jornada, que se acaba por ser
sobremaneira gratificante, não deixa de incluir troços de caminho íngremes e
ásperos. Miguel Pimentel, “o tangedor” micaelense, muito provavelmente o melhor
tocador tradicional de viola ainda vivo e actuante, que me mostrou infinita disponibilidade,
perdendo inúmeras horas do seu merecido descanso e desviando outras tantas dos
seus restantes projectos na criação dos arranjos, na repetição das tocatas, no
incentivo sempre presente nas horas em que o desânimo se instala. Sua amável esposa, D. Conceição, sempre
disposta a elevar o moral dos cansados intérpretes com um delicioso chazinho e
saborosos biscoitos, de holísticos efeitos. Eduardo Botelho, que colocou o
melhor da sua experiência ao serviço de uma forma de encarar a música
açoriana que, na sua simplicidade, não é talvez a mais fácil de registar em
termos sonoros, e que mesmo com o apoio da sofisticada tecnologia de que dispõe
muito exigiu da sua sensibilidade artística.
De
várias (muitas!) fontes recebi estímulo e incitamento. Na impossibilidade de as
listar por completo, vou referir neste momento três bons amigos meus: José
Carlos Carreiro, um das personalidades que desde o princípio mais valorizou o
minha abordagem da música tradicional açoriana; Margarida Lalanda, cujas palavras foram
determinantes na minha decisão de gravar de novo, e Santos Narciso, que mesmo atormentado
pela doença, aceitou escrever sobre um percurso em cujos primórdios também
participou – e as estes três ilustres agradeço não só os incentivos, como também
os textos que a generosidade lhes ditou e que integram este livrinho.
A
todos aqueles que aceitaram a minha presença, e em suas casas me acolheram mais
os gravadores que foram evoluindo, dos velhos modelos de bobinas, que ainda
usei, passando pelos de áudio-cassetes até às miniaturas digitais da
actualidade, e se dispuseram a comigo partilhar os seus valiosos saberes,
respondendo com bonomia às minhas perguntas e ainda (quantas vezes!) sendo os
primeiros a me agradecer - sou eu que agradeço sensibilizada, e sendo tantos,
entre eles individualizo o bondoso senhor José Inácio Freitas, de Santo Amaro,
S. Jorge, tocador, mandador de balho, e cantor de extraordinária suavidade, a
quem devo as duas belas peças jorgenses que integram este trabalho. Ao saudoso
maestro Hélio Teixeira da Rosa, bem como ao seu amigo e associado Osvaldo
Ferreira de Melo, não posso deixar de agradecer os excelentes temas do folclore
catarinense que me deram a conhecer, e ainda, ao primeiro, a bondade com que me
recomendava “que cantasse todos os dias” – mesmo naqueles em não parecia
possível reunir energias para tão excessivo esforço.
Agradeço
aos meus filhos, que ao longo dos anos e dos quilómetros de distância para onde
a vida os levou nunca deixaram de me motivar, na ânsia de mais um trabalho meu,
que daria continuidade aos que embalaram as suas infâncias felizes. Agradeço ao
padre José Luís de Fraga, meu tio e padrinho, com quem aprendi a forma, não de
deter, mas sim de contornar, de algum modo, o impacto que o temível século
vinte teria nas tradições populares. E,
acima de todos! agradeço ao meu pai, que há tantos anos me apresentou a música,
e as músicas pelas quais me apaixonei sem remédio, e que acabariam por se
tornar numa parte importante da minha vida - para sempre. A ele tudo devo, e ainda
mais isso.
Que
“Entre França e Aragão”, onde de facto foram travadas e, graças a Deus,
vencidas muitas batalhas, possa continuar o caminho iniciado e percorrido pelos
seus antecessores, no sentido de fomentar o gosto do ouvinte por aquilo que
terá sido a música das ilhas dos Açores num tempo que já não é o presente. E se
a ingénua pergunta que há dias me fazia uma amiga alemã, que obviamente não
conhece o nosso actual sistema educativo - as “tuas” músicas são ensinadas nas
escolas, não é verdade? se revelar tão profética, quanto ao porvir, quão
desajustada é em relação ao presente, não poderei ficar mais feliz, porque essa
seria a melhor forma de as transportar para o futuro.
E
pronto. “Da obra ousada é minha a parte feita”; o por fazer já se sabe com quem
é…
Nordeste,
Julho de 2014
Maria
Antónia T. de Fraga (Esteves)
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