Saturday, September 12, 2015

Uma tecedeira de cantigas chamada Maria Antónia Esteves


Uma tecedeira de cantigas

chamada Maria Antónia Esteves

 Numa altura em que praticamente ninguém se interessa pelo Cancioneiro dos Açores (e os poucos que o fazem, através do Cancioneiro Geral de Armando Côrtes-Rodrigues, andam a lavrar regos já lavrados…), é de saudar a insistência e a persistência de Maria Antónia Esteves, que, numa linha de contínua e continuada investigação, vai recolhendo, registando, gravando e cantando a música tradicional dos Açores e suas incidências com a música vinda do continente português, da Europa, das Américas, do Brasil e de África.

Muito haveria a dizer sobre esta cantora e etno-musicóloga, que tem talento, sensibilidade e bom gosto. Porque não é impunemente que se é herdeira de uma tradição musical e poética com raízes fundas e profundas nos cantares de gesta medievais e na melhor poesia trovadoresca. Porque não é impunemente que se é trisneta de baleeiros que balearam até ao Oceano Árctico. E porque não é impunemente que se é sobrinha do grande folclorista açoriano Padre José Luís de Fraga, e se cresceu no seio de outros familiares para quem a música constituiu sempre um compromisso de paixão.

Depois de Açores (45 r.p.m., 1981), Manjericão da Serra (LP, 1984), Canto do Prisioneiro (LP, 1988) e Com o Rosto a Este Vento (CD, 2005), temos agora Entre França e Aragão (2014) como título do mais recente CD de Maria Antónia Esteves e que, a meu ver, constitui uma das mais porfiadas experiências musicais dos últimos anos em solo pátrio, sendo que, nos Açores, não há precedentes de um disco com esta temática. Um disco com boa apresentação gráfica e com um booklet que nos dá informação muito precisa sobre a origem, a história e outras incidências dos temas recolhidos.

Com a sua voz telúrica, bem timbrada, límpida e expressiva, superiormente acompanhada à viola de arame (ou viola da terra) por Miguel Pimentel, que é também autor dos eficazes e eficientes arranjos para viola(s), Maria Antónia Esteves canta sentimentos, emoções e estados de alma. Com expressão lírica e grande serenidade.

Ela canta errâncias marinheiras e vivências baleeiras (“Um Marinheiro”, recolhida na ilha das Flores pelo padre José Luís de Fraga), evoca o amor e a dolência nostálgica da alma açoriana (“O Meu Bem”, por ela recolhido na ilha de São Jorge, ”Cabeçal onde me deito”, recolhida na ilha de São Miguel por Miguel Pimentel, e “Lindos Amores”, recolha de Manuel José Tavares Canário em São Miguel), havendo a destacar a relação que a cantora/recolectora estabelece entre melodias/danças do folclore açoriano e as suas congéneres do Sul do Brasil (Rio Grande do Sul e Santa Catarina), nomeadamente “Ratoeira” e “Terno de Reis”, temas que, sendo de origem açoriana porque levados para o Brasil por colonos açorianos no século XVIII, foram naquelas regiões recolhidos. E aqui muito haveria a dizer sobre as marcas da música criada nos Açores que a diferencia da matriz portuguesa, flamenga, americana, africana ou brasileira, ou seja, o fenómeno da adopção, adaptação, alteração e criação local de toadas populares açorianas – matéria sobre a qual me venho debruçando nas últimas três décadas.

Mas a cereja em cima do bolo deste disco é mesmo a faixa “A Donzela Guerreira”, versão recolhida na ilha de São Jorge, tratando-se de um dos romances tradicionais mais populares nos países do sul da Europa, e que dá conta da história de uma jovem que vai combater a guerra “entre França e Aragão” fazendo-se passar por homem.

E depois há essas duas preciosidades melódicas e harmónicas que são o “Fado Maria da Luz” (recolhido por Maria Antónia Esteves na ilha de São Jorge) e “Fado da Meia Noite” (recolhido por Miguel Pimentel em São Miguel). Por isso mesmo, o que escutamos neste disco não é folclore, mas música autêntica e profunda, toada intemporal e universal.

Em todas as cantigas do disco, a voz de Maria Antónia Esteves funde-se, em comunhão espiritual e em supremo diálogo, com o toque rasgado e puro da viola de Miguel Pimentel (filho de Manuel Moniz que foi igualmente notável tocador de viola), cuja excelente técnica e extraordinária capacidade solística estão bem patentes em outros três temas: “Pezinho”, “Chamarrita do Meio” e “Sapateia”. Aliás, este disco é também uma declaração de amor e de dignificação à nossa viola da terra, às suas sonoridades, capacidades e potencialidades. (De resto não é difícil tocar viola da terra, o que é difícil é tocá-la bem…).

De grande qualidade, este disco Entre França e Aragão (viagem musical e poética feita a partir dos Açores mas com rotas traçadas a pensar noutros espaços universais, ou seja, com música que parte da ilha para o mundo e que, do mundo, regressa à ilha) cumpre um verdadeiro serviço público. Por isso, mas não só por isso, deve merecer a nossa melhor audição.

Uma coisa é certa: na solidão comprazida de São Pedro do Nordestinho, na ilha de São Miguel, a trovadora Maria Antónia Esteves, sorriso radioso e sereno (calma por fora mas criativamente muito agitada por dentro), continuará a dar voz e expressão à alma de um povo. Porque é esse o seu destino. Porque é essa a sua missão. E porque é essa a sua forma de perseguir caminhos de sonho e felicidade.

 Horta, 31 de Agosto de 2015
Victor Rui Dores

 

Monday, May 25, 2015

No coração dos Açores

Pe. José Luís de Fraga, em retrato por Victor Câmara.
Com Maria Antónia Fraga no coração dos Açores
 
Entre França e Aragão é nome mais que belo para um trabalho musical como este que agora é editado com sabor a fruta madura da voz única e irrepetível de Maria Antónia Fraga. Os Açores voam mais alto e perdem-se na planura do tempo com estes sons que nos acordam para a beleza passada que a tecnologia do presente projecta para o futuro.
A voz descanta e encanta. Miguel Pimentel empresta beleza ao acompanhamento, na sonoridade da viola, com uma mestria impregnada de classicismo e simplicidade que é quase como que uma sombra dando relevo à luz.
Donzela Guerreira é mais do que a menina da lenda cantada nos Açores e recolhida nos romanceiros populares; é mais do que menina que se veste de homem para poder participar na guerra, lá para os confins do século XVI. Donzela Guerreira é a própria imagem de Maria Antónia Fraga, mulher açoriana temperada pela ocidental força florense e amadurecida na grandeza destes mundos africanos, onde viveu e aprendeu a abrir o coração para este lado de cá, ilhas atlânticas com sonhos de atlântidas…
Ao sol de Luanda sentiu o sabor da sombra da saudade, viveu os terreiros onde palpitava uma chamarrita do meio, ou sonhava com Meus Amores, dois de manhã e dois à tarde
Amadureceu e hoje surge como senhora da música, que não tem medo da palavra folclorista e que se assume como genuína e destemida intérprete do mais puro que há no folclore açoriano.
Não precisamos sequer de falar em todos os seus anteriores discos. Um deles, o terceiro que editou, ainda em vinil, com a etiqueta da Polygram, nos distantes anos oitenta, tocou-me profundamente porque acompanhei todos os passos da sua edição, por motivos profissionais. E foi daí que veio esta amizade e este respeito por esta grande mulher que se chama Maria Antónia e que carrega o nome de um dos nossos maiores investigadores musicais de sempre, seu tio, o Padre José Luís de Fraga, cujas recolhas são manancial quase inesgotável para quem quiser conhecer o folclore açoriano. O Padre Fraga, como carinhosamente o tratava, foi uma das referências da minha juventude e mais tarde em Maria Antónia, senti como que uma continuidade de tão importante presença na minha vida.
Poderia dizer isto em carta escrita, porque há sempre na música açoriana uma carta escrita que não temos por quem mandar. Mas digo-o aqui, sentindo aquela sensação de quem entra num magnífico pomar e se depara com árvores carregadas de sumarentos frutos maduros em que mal nos atrevemos a tocar. Assim é a voz de Maria Antónia Fraga que depois de um longo interregno, surge, inesperadamente, bela e timbrada, simples como trinado de ave, fresca como água de ribeira, daquelas que debruam as escarpas da ilha das Flores, mas ao mesmo tempo segura e sonora, como se o palco da vida a tivesse feito senhora de muitas viagens e de outras músicas.
Este Entre França e Aragão, contrariamente ao que Maria Antónia diz, não é um canto de cisne, é uma feliz obrigação de continuar, porque sabe a pouco. Ouve-se em poucos minutos e ficamos com a sensação que há sempre tanto para cantar. Há mesmo ocasiões em que apetece não avançar… Retroceder, ouvir de novo, é talvez o melhor que um artista pode escutar de um trabalho seu. E eu senti-o e digo-o aqui… O Fado Maria da Luz, uma magnífica recolha da própria Maria Antónia, em São Jorge, é um desses casos. Prende-nos a música, e cativa-nos a letra que nos transporta ao mais íntimo das lembranças: Quando vejo uma velhinha, com as saias a arrastar, lembra-me a minha mãezinha no seu modesto trajar.
Já o referi, mas repito. Os acompanhamentos de Miguel Pimentel, que não precisa de qualquer apresentação pelo muito que tem dado à divulgação do mais emblemático instrumento musical da nossa terra, valorizam o trabalho deste disco de uma maneira quase sublime, essencialmente pelo equilíbrio e pela força que conferem à palavra cantada, como se fosse um diálogo de tempo e de modo, que se repete em ecos inesquecíveis e duradouros.
Maria Antónia Fraga é professora, toda a vida… Como ela própria se classifica, reformada pela graça de Deus, continua a ensinar e melhor do que tudo, continua a ter alunos. Os ensinamentos que colherão todos aqueles que lerem a brochura que acompanha este trabalho musical são disto prova concreta. O folclore, de qualquer lugar e de qualquer época é um dos maiores compêndios de história e cultura sobre um povo.
Nos Açores não fugimos à regra. Pena é que muitas vezes a tentação das adaptações para exibição tire a genuinidade e estrague a beleza original das canções. Em Maria Antónia Fraga nota-se esta preocupação de “regresso às origens”, com a convicção de que a água da nascente é sempre a mais pura e cristalina.
A música e o folclore dos Açores ficam mais ricos com este trabalho, mas cresce a dívida de gratidão por tudo quanto a cantora tem feito por estas ilhas, desde que aqui regressou, nos anos setenta, logo após a revolução dos Cravos, quando muito era preciso reconstruir e preservar.
Entre França e Aragão é o coroar de uma carreira, mas é acima de tudo o testemunho de que há valores e entusiasmos que ultrapassam o tempo.
Merece ser ouvido e acima de tudo divulgado, porque a ilha sente-se mesmo que a nossa casa seja a única no deserto de todas as ausências. Com o carinho do cabeçal onde me deito e sinto que tanta falta me têm feito os mimos de minha mãe, porque, como no Fado da Meia Noite… nem só de alegre se canta, nem só de triste se chora.
Descobrir cada uma destas frases, entrar com elas na alma do tempo e trazê-las junto ao peito, é motivo mais que suficiente para esta palavra de gratidão a Maria Antónia Fraga, com Miguel Pimentel e todos os que fizeram este disco. Obrigado… e bom passeio musical Entre França e Aragão, no coração dos Açores!
 
Santos Narciso
Jornalista
 


Saturday, May 09, 2015

"Entre França e Aragão"

 
(MAE canta no Nordeste para o Sr. Presidente da República, a convite do Dr. José Carlos Carreiro, sendo acompanhada à viola por Miguel Pimentel)

“Entre França e Aragão”

Sempre vi no trabalho de Maria Antónia Esteves (MAE) uma mistura ente questões profissionais, de ciência pura – uma excelente docente universitária de Física e Química, e também do ensino secundário – e a artista com preocupações estéticas, na procura da mais pura expressão da música tradicional açoriana.

Este seu novo cd partilha valores musicais do nosso património comum dos Açores, sendo MAE, sem dúvida, na actualidade, a melhor escolha para se escrever sobre a identidade cultural açoriana na área da etnomusicologia, pesquisa, recolha, divulgação e recriação dos valores musicais do povo açoriano.

“Entre França e Aragão“ é o seu quinto trabalho editado, depois de “Açores” (45 r.p.m.),  “Manjericão da Serra” (LP), “Canto do Prisioneiro” (LP) e “Com o Rosto a Este Vento” (cd), constituindo mais uma demonstração da sua imprescindibilidade na musicologia açoriana. A viola da terra, magistralmente executada por Miguel Pimentel, de novo dá expressão e alma ao trabalho, acentua a estrutura musical dos temas, moldando-se a cada sílaba cantada por MAE.

O cd, com uma excelente qualidade sonora, mergulha a fundo nas raízes e na interculturalidade açoriana da diáspora, de que é exemplo o estado brasileiro de Santa Catarina, povoado por casais açorianos já lá vão mais de 250 anos, e traz à memória outros trabalhos da sua carreira musical, rica de actuações, entre as quais recordo com muito agrado a actuação na Praça do Município desta Vila, durante a única visita de um Chefe de Estado ao concelho do Nordeste em toda a sua história, expressando o sentir deste povo ao mais alto magistrado da Nação, e comitiva.

“Entre França e Aragão” é, assim, mais uma manifestação da vitalidade de uma das mais importantes musicólogas do nosso tempo, obra de alguém que conhece, porque investigou a fundo, a cultura musical açoriana, com uma voz e uma qualidade apuradas.

De facto, MAE não é uma voz qualquer. É a voz genuína do povo das ilhas onde nascemos, a voz da pátria açoriana onde gostamos de viver.

Saudemos, pois, mais esta sua viagem às ilhas de bruma e de sonho.

 
José Carlos B.Carreiro

(Ex Presidente da Câmara Municipal do Nordeste)
 


Saturday, May 02, 2015

DOS AÇORES AO BRASIL, POR ENTRE FRANÇA E ARAGÃO: VIAGENS DE UMA DONZELA GUERREIRA


 
 
DOS AÇORES AO BRASIL, POR ENTRE FRANÇA E ARAGÃO:
                                        VIAGENS DE UMA DONZELA GUERREIRA

Pela Profª Drª Margarida Sá Nogueira Lalanda
 
«Eu vou cantar agora “O Meu Bem” de outra maneira; mas é sempre “O Meu Bem”, à mesma…»: nestas sábias palavras de um intérprete jorgense de música tradicional, recolhidas por Maria Antónia de Fraga Esteves e escolhidas como intróito à peça nº7 deste seu mais recente álbum, está toda uma síntese do percurso desta musicóloga açoriana. “O seu bem” como estudiosa, seleccionadora e divulgadora é a identidade musical dos Açores, as raízes históricas dos temas tradicionais e das suas versões em geografias diversas. Com espírito de missão vai já na quarta década de entrega a um completo trabalho de investigação, partindo de recolhas próprias e de outros (com destaque espe­cial para o Padre José Luís de Fraga, seu tio paterno e padrinho) e sempre com grande exigência de rigor também na pronúncia das palavras, na sua etimologia, na busca das influências e afinidades musicais relativamente a outros povos marítimos e migrantes, na determinação do que é genuíno em tal recons­ti­tuição do passado histórico. A missão que a si própria se impôs é de cariz pedagógico, em plena coerência com a sua atividade de professora: dar a conhecer dentro e fora do arquipélago a qualidade e a variedade do património musical açoriano, muito mais rico do que aquilo que habitualmente é divulgado. E para tal alia à sua vertente de investigadora a sua condição de intérprete vocal, além de editora por conta própria, dos trabalhos discográficos que tornam público este duplo labor.

«Entre França e Aragão» é o 5º título da produção musical de Maria Antónia de Fraga Esteves. Para bem entender a sua inserção no projecto como um todo e as razões da escolha de um nome aparentemente nada açoriano, é importante considerar o percurso desta estudiosa-cantora e o mundo que nos desvenda via “internet” no seu “blog” (http://mariaantoniaesteves.blogspot.pt/). Aqui se elucida que «foi por diversas vezes convidada para dar cursos, ou colaborar com cursos em que o folclore açoriano fosse importante como disciplina», onde «pôde transmitir, a grupos por vezes bastante grandes de alunos, tanto locais como da diáspora, a sua visão do folclore musical açoriano e da forma como deve em seu entender ser estudado, ou seja comparativamente _não só entre ilhas, como também entre ilhas e continente português, Europa e Américas. Outra impor­tante consequência foi a transmissão aos jovens da necessidade de se­rem levadas a efeito mais recolhas, tendo sido conseguido, por vezes, pôr grupos de alunos a fazer tra­balho de campo.» É, por conseguinte, da pesquisa etnográfica que resul­ta a comparação entre textos e músicas diferentes nas proveniências geográficas mas fruto de vivências e imaginários comuns _e de que, como se lê neste mesmo libreto, «a história da jovem que vai combater na guerra fazendo-se passar por homem constitui, com as suas inúmeras variantes, um dos romances tradicionais mais populares». E eis como a exígua distância real e pirenaica “entre França e Aragão” foi transformada pelas culturas populares num imenso contínuo territorial e marítimo ligando a Europa do Sul à América do Sul, e natural­mente com presença marcante na centralidade atlântica das nove ilhas dos Açores…

A unidade entre o presente disco e os que o antecederam é inegável, porque radica na clara explicitação, acima feita, dos objectivos da sua criadora. O início de todo este projecto de divulgação pedagógica musical dá-se em 1981, com a publicação de «Açores», um disco em vinil no formato mais pequeno, 45 rotações por minuto, com acom­panhamento de viola (de seis cordas, entenda-se) e com duas canções recolhidas na ilha das Flores (uma pelo pai, a outra pelo tio de Maria Antónia): «Tinha um Rei uma Filha», no lado A, e «Barquinha Feiticeira», no lado B. Pouco tempo depois, em 1984, o material estudado permite já a edição de um disco grande, um LP (de 33 rotações por minuto), «Manjericão da Serra», com dez temas (oito novos, e recupe­ração dos dois de 1981), tocados em «viola de seis cordas» e agora também em «viola de arame», ou seja, na denominada «viola da terra» ou «açoriana». A este propósito regista-se no dito “blog”: «“Manjericão da Serra” marcou uma mudança na actividade de divulgação de Maria Antónia Esteves, no sentido de –even­tualmente sem deixar de incluir um ou outro instrumento, quando necessário_ utilizar fundamentalmente e como instrumento principal a viola regional, o que foi possibilitado pela excepcional qualidade do tocador Miguel de Braga Pimentel.» Tal entusiasmo é manifesto quer em pormenores carregados de simbolismo _como na identificação do autor da fotografia, que «fez a capa por ter com­preendido os Açores»_ quer na tarefa que a musicóloga se impõe doravante: divulgar e valorizar «a viola azorica, tão endémica dos Açores como é o cedro do mato», e que então se encontra bastante desprezada local­mente. Justamente por isso, a imagem da capa do seu 3º disco em vinil, formato LP, e publicado também em cassette audio, em 1988, «Canto do Prisioneiro», merece de um amigo um comentário em jeito de sub-título: "a viola salva das águas" ou “a apoteose à viola açoriana”. E a construção da afirmação desta sua protegida passa igualmente pelo modo de indicar os instrumentos participantes: ela, a raínha, que não entrara no «Açores» e que no «Manjericão da Serra» era «viola de arame», apresenta agora o seu nome completo, «viola de arame açoriana»; a seu lado, pontualmente e com grande dignidade, o rei dos instrumentos de corda, o violino; e a outra, designada «viola de seis cordas (violão)» em 1984 e, no primeiro disco, apenas «viola» (por ser a única aí usada), deixa de ter direito a partilhar com ela esse nome e é identificada exclusivamente como «violão»… «Canto do Prisioneiro» revela ter um duplo sentido, como a sua criadora tanto gosta: para além de ser o título dum dos nove temas do disco, todos eles novos, é claramente a voz da “viola de arame” que finalmente se liberta das muitas prisões e preconceitos que a tinham agrilhoado até esse momento.

Em 2005 surge o 1º CD de Maria Antónia de Fraga Esteves, «Com o Rosto a Este Vento» (expressão do cronista Gaspar Frutuoso para designar o Nordeste, com a qual a folclo­rista pretende homenagear a vila micaelense onde reside). O «violão» acompa­nha aí a «viola da terra» (expressão tornada corrente entretanto), sem outras cordas: os luga­res e os méritos de ambos já se encontram bem definidos e aceites. Embora nenhum dos temas do 3º disco seja retomado (ao contrário de vários do 2º e de ambos os do 1º), o espírito marítimo daquele (com especial destaque para «Sou Marinheiro», de que foi feito um telefilme, «Rema», e «Nau Catrineta», uma associação voluntária às comemo­rações dos cinco séculos de Descobrimentos portugueses) prolonga-se e desenvolve-se substan­cialmente neste. Com efeito, para além das tocatas tradicionais açorianas, o que distingue o CD é a temática do mar e da baleação, e é, pela primeira vez, a inclusão de canções originárias de outros países e interpretadas em inglês ou em francês, bem como de peças menos conhecidas ou com influências africanas e brasileiras. Bem sucedida na missão de dignificar a viola regional, a musicóloga já pode agora concentrar os seus esforços na outra dimensão do seu projecto: a comparação com o folclore musical de outros espaços.

Mar, viagem e mudança são indissociáveis, e é essa a razão para o surgimento em 2014 da continuação natural do disco publicado quase dez anos antes. A ligação entre ambos os CDs é ainda reforçada pela escolha de «Um Marinheiro» para a abertura do mais recente, num prolongamento das canções de trabalho de mar do primeiro, e pelo facto de a última peça de «Com o Rosto a Este Vento» ter sido, tal como a que dá o nome ao novo trabalho, relativa a um soldado e à guerra. Em «Entre França e Aragão», este 2º CD da autora (cujo título, atrás explicado, dá continuidade à internacio­na­lização da sua pes­quisa etnográfica), está documentada, como se anuncia no “blog”, «a relação entre as músicas folclóricas açorianas e as suas con­géneres do Sul do Brasil (Rio Grande do Sul e Santa Catarina, sobretudo), incluindo dois excelentes exemplos (Ratoeira e Terno de Reis) de temas que, embora de ori­gem açoria­na, segundo estudiosos do folclore bra­sileiro, foram recolhidos nessas regiões.»

É muito interessante notar que a música “principal”, «Donzela Guerreira», não é a primeira; a sua colocação em 5º lugar (nesta 5ª produção discográfica da autora…), aconchegada e salvaguardada do exterior por quatro outras a precederem-na e mais sete que se lhe seguem, faz dela o verdadeiro coração deste CD. E o mesmo se aplica à capa, reprodução de parte dum quadro pintado entre o último trabalho da musicóloga editado à moda dos últimos anos do século XX e o seu primeiro já nas novas tecnologias: a viola, cerne desta identidade musical açoriana, encon­tra-se amorosa­mente protegida pelas mãos e pelo corpo da sua pesquisadora e valori­zadora, e torna-se no rosto visível do coração que por trás dela vive. Tal protecção é tanto mais de salientar quanto o instrumento de eleição de Maria Antónia de Fraga Esteves para interpretar o património musical que estuda não é a viola nem qualquer outro externo a si, mas é a sua própria voz __cujos cambiantes têm mudado quase de disco para disco, mas mantendo sempre um perfeito controlo e equilíbrio entre harmonia e potência, revelador da força interior que lhe tem sido necessária para persistir na missão cultural que para si traçou, como «Donzela Guerreira» que é.

A mudança retratada neste trabalho é, ainda mais do que a de local, a de substituição de um passado agradável por um presente de desolação e saudade, como em «Cabeçal onde me deito», ou de culpa, onde o expoente máximo é «Fado Maria da Luz», ou mesmo de privação e sobrevivência em ambiente tão pouco acolhedor que, como se carpe o moço em «Um Marinheiro», em vez da primeira refeição do dia é servida a ordem de execução dum trabalho tão duro quanto dar alcatrão num navio. Ora não é precisa­mente esta a essência da emigração, e em concreto da que no século XVIII se deu dos Açores para o povoamento e a defesa do Sul do Brasil?... E o carácter penoso do destino não é inerente à própria condição humana desde a sua criação, como se diz no fado (palavra que já de si o significa) «Maria da Luz» («quando Deus criou a rosa/ num paraíso encan­tado/ caiu uma e desfolhou-se/ e assim nasceu o fado»)?...

Existem diversas forças agregadoras das várias componentes deste disco, que adquirem matizes diferentes consoante a ordem por que são ouvidas (experiência que vivamente se recomenda). Entre algumas tocatas há laços de complementaridade meló­dica ou temática; a título de exemplo, atente-se ao que sucede quanto a múltiplas facetas do ser-se mulher. Temos aqui a jovem que, na qualidade de filha determinada e na inexis­tência de outro varão em casa, prescinde tem­porariamente da sua feminilidade para ir substituir o pai e se tornar numa donzela guerrei­ra; e repare-se que, embora o seu primeiro objectivo seja auxiliar o seu velho pai, o segun­do é a vitória, não uma mera presença («quero ir ganhar a guerra entre França e Aragão»). Igualmente decidida, mas neste caso para uma prática destrutiva e condenada, é a «Dona Maria da Luz/ que seu marido matou», situação ainda mais arrepiante pelo facto de se começar por trazer à memória uma «avozinha» humilde e desprotegida… Entre os dois extremos abundam os quoti­dianos mais comuns, também eles dominados pelos afectos: a instabilidade presente em «Lindos Amores» dá lugar à feliz plenitude em «O Meu Bem», mas pode transformar-se, como na «Ratoeira», na dor pela perca do ente amado (que deixou de estar disponível: «na roda já não está/ quem o meu coração que­ria»), dor agravada pela certeza de que «hei-de amar-te até morrer». O sentimento de melancolia amorosa atinge o seu máximo no «Fado da Meia Noite», com uma vivência menos comum: «nem só de alegre se canta, nem só de triste se chora: de alegria chorei já, de tristeza canto agora». Ora sendo este o último trecho do CD «Entre França e Aragão», será abusivo pensar que o próximo trabalho de Maria Antónia de Fraga Esteves talvez se debruce sobre as raízes e os frutos internacionais dos lamentos açorianos de amor?... Venha ou não a ser esta a temática, de certeza que o saborearemos com o mesmo prazer que a sua obra nos tem proporcionado desde 1981!

 

Margarida Sá Nogueira Lalanda

Junho 2014
Na foto: MAE com seus pais (e já a viola...) em Angola, cidade de Carmona (Uíge). 1967.

Wednesday, April 22, 2015

Apresentação de “Entre França e Aragão” pela autora (do libreto do cd)


 
 
Desde sempre houve música em minha casa. Meu pai cantava, meu tio cantava, minha tia não cantava, mas era professora de piano, minhas primas cantavam, até minha avó e minha mãe também cantavam. Muitas foram as cantigas que ouvi cantar, por vezes retiradas de velhas folhas pautadas e manuscritas, outras de livros ainda mais velhos. Muitas eram (hoje sei-o) de proveniência erudita, árias de óperas conhecidas, por exemplo (lá em casa havia uma preferência especial por Donizetti; eu própria cheguei a cantar trechos de L’ Elisir d’amore, por impossível que isso hoje me pareça…) mas outras eram cantos do povo que meu tio e meu pai ou conheciam do seu próprio passado, ou pesquisavam, recolhiam e registavam. Entre todas uma agradava-me especialmente, talvez porque no dia em que primeiro a ouvi meu pai me sentara no seu colo, enquanto a cantava como se fosse um embalo. A suave cadência, e, quem sabe, a vida corajosa da Barquinha Feiticeira, que eu logo imaginei como uma sereia diferente - aquela que enfrentava os perigos sem nome do mar para salvar os marinheiros perdidos, em vez de os arrastar consigo para o abismo, como faziam as suas perversas irmãs, deixaram marca indelével no meu íntimo. Não se sabia quem escrevera as palavras nem quem compusera a linda melodia, mas de ambas o povo se tinha apropriado, o que transformava a “barquinha” numa peça folclórica – o que só muito mais tarde vim a perceber. Para mim, então, era apenas a linda cantiga...que eu pedia a meu pai para cantar outra vez.

 
Os anos passaram. Aprendi música, e a cantar, com meu pai; aprendi a admirar meu tio, notável folclorista. Estudei as suas recolhas, e as recolhas de outros. Recolhi eu própria. Das músicas folclóricas dos Açores passei às do Continente português, das portuguesas às europeias. Das açorianas, de novo, às americanas, africanas e brasileiras. Um dia entendi que era preciso e urgente divulgar.  E é isso que faço desde então…

 
…..

 
“Entre França e Aragão” é o quinto título da minha diminuta discografia, que em 1981 se iniciou com o 45 r.p.m. “Açores”, que integrava  precisamente a Barquinha Feiticeira de que falei atrás, e um outro romance, Tinha um Rei uma Filha – e desta forma tão modesta comecei a apresentar ao mundo um folclore que poucos conheciam, e que alguns - talvez condicionados pelo repisar constante das poucas peças que nos habituámos a considerar como “folclore” - até sentiram dificuldade em encarar como tal. Em 1984 e 1988 surgiram os LPs “Manjericão da Serra” e “Canto do Prisioneiro”, em que pude continuar a divulgar a minha própria forma de ver e sentir a música tradicional da terra onde nasci, no primeiro de ambos já incluindo o instrumento açoriano por excelência, a viola de arame açoriana ou viola da terra,   que nunca mais se apartaria das minhas realizações.

E só em 2005 surgiu o primeiro cd, “Com o Rosto a Este Vento”, em que abordei a temática dos nossos cantos marítimos, que tão esquecidos foram por muitos dos nossos recolectores, sublinhando as relações existentes entre os mesmos e cantos similares de outros  povos.

Surge agora o presente trabalho, também editado em cd, onde apresento dois temas folclóricos brasileiros, do estado de Santa Catarina, relacionados com o corpo tradicional açoriano de onde terão derivado, além de chamar a atenção, mais uma vez, para os recolectores do passado e apresentar recolhas de minha própria autoria.

Na simplicidade dos acompanhamentos instrumentais, onde a viola reina desta vez como única senhora, pretendo recriar, até certo ponto, a ambiência dos serões de antanho, em que perante as mãos habilidosas - muito embora calejadas - do tocador, uma voz se levantava, mais uma vez repetindo as palavras ouvidas aos avós.

 
Não o fiz sozinha, porém. Tive companhia nesta jornada, que se acaba por ser sobremaneira gratificante, não deixa de incluir troços de caminho íngremes e ásperos. Miguel Pimentel, “o tangedor” micaelense, muito provavelmente o melhor tocador tradicional de viola ainda vivo e actuante, que me mostrou infinita disponibilidade, perdendo inúmeras horas do seu merecido descanso e desviando outras tantas dos seus restantes projectos na criação dos arranjos, na repetição das tocatas, no incentivo sempre presente nas horas em que o desânimo se instala.  Sua amável esposa, D. Conceição, sempre disposta a elevar o moral dos cansados intérpretes com um delicioso chazinho e saborosos biscoitos, de holísticos efeitos. Eduardo Botelho, que colocou o melhor da sua experiência ao serviço de uma forma de encarar a música açoriana que, na sua simplicidade, não é talvez a mais fácil de registar em termos sonoros, e que mesmo com o apoio da sofisticada tecnologia de que dispõe muito exigiu da sua sensibilidade artística.

 
De várias (muitas!) fontes recebi estímulo e incitamento. Na impossibilidade de as listar por completo, vou referir neste momento três bons amigos meus: José Carlos Carreiro, um das personalidades que desde o princípio mais valorizou o minha abordagem da música tradicional açoriana;  Margarida Lalanda, cujas palavras foram determinantes na minha decisão de gravar de novo, e Santos Narciso, que mesmo atormentado pela doença, aceitou escrever sobre um percurso em cujos primórdios também participou – e as estes três ilustres agradeço não só os incentivos, como também os textos que a generosidade lhes ditou e que integram este livrinho.

 
A todos aqueles que aceitaram a minha presença, e em suas casas me acolheram mais os gravadores que foram evoluindo, dos velhos modelos de bobinas, que ainda usei, passando pelos de áudio-cassetes até às miniaturas digitais da actualidade, e se dispuseram a comigo partilhar os seus valiosos saberes, respondendo com bonomia às minhas perguntas e ainda (quantas vezes!) sendo os primeiros a me agradecer - sou eu que agradeço sensibilizada, e sendo tantos, entre eles individualizo o bondoso senhor José Inácio Freitas, de Santo Amaro, S. Jorge, tocador, mandador de balho, e cantor de extraordinária suavidade, a quem devo as duas belas peças jorgenses que integram este trabalho. Ao saudoso maestro Hélio Teixeira da Rosa, bem como ao seu amigo e associado Osvaldo Ferreira de Melo, não posso deixar de agradecer os excelentes temas do folclore catarinense que me deram a conhecer, e ainda, ao primeiro, a bondade com que me recomendava “que cantasse todos os dias” – mesmo naqueles em não parecia possível reunir energias para tão excessivo esforço.

 
Agradeço aos meus filhos, que ao longo dos anos e dos quilómetros de distância para onde a vida os levou nunca deixaram de me motivar, na ânsia de mais um trabalho meu, que daria continuidade aos que embalaram as suas infâncias felizes. Agradeço ao padre José Luís de Fraga, meu tio e padrinho, com quem aprendi a forma, não de deter, mas sim de contornar, de algum modo, o impacto que o temível século vinte teria nas tradições populares.  E, acima de todos! agradeço ao meu pai, que há tantos anos me apresentou a música, e as músicas pelas quais me apaixonei sem remédio, e que acabariam por se tornar numa parte importante da minha vida - para sempre. A ele tudo devo, e ainda mais isso.

 
Que “Entre França e Aragão”, onde de facto foram travadas e, graças a Deus, vencidas muitas batalhas, possa continuar o caminho iniciado e percorrido pelos seus antecessores, no sentido de fomentar o gosto do ouvinte por aquilo que terá sido a música das ilhas dos Açores num tempo que já não é o presente. E se a ingénua pergunta que há dias me fazia uma amiga alemã, que obviamente não conhece o nosso actual sistema educativo - as “tuas” músicas são ensinadas nas escolas, não é verdade? se revelar tão profética, quanto ao porvir, quão desajustada é em relação ao presente, não poderei ficar mais feliz, porque essa seria a melhor forma de as transportar para o futuro.

 
E pronto. “Da obra ousada é minha a parte feita”; o por fazer já se sabe com quem é…

 

Nordeste, Julho de 2014

Maria Antónia T. de Fraga (Esteves)

Thursday, March 19, 2015

"Entre França e Aragão" chegou, por fim!


 




Sunday, June 08, 2014

Entre França e Aragão

Entre Novembro de 2013 e Abril de 2014 teve liugar a captação sonora,  nos estúdios da Global Point Music, para o novo cd de Maria Antónia Esteves, que se denominará "Entre França e Aragão" e conta com a participação do grande tocador de viola açoriana sr. Miguel Pimentel.
De momento, fazem-se, ainda em estúdio, os últimos acertos e escrevem-se os textos que acompanharão a gravação, pensando-se que possa estar disponível em Novembro ou Dezembro próximos.

O tema deste último trabalho é a relação entre as músicas folclóricas açorianas e as suas congéneres do Sul do Brasil (Rio Grande do Sul e Santa Catarina, sobretudo), incluindo dois excelentes exemplos (Ratoeira e Terno de Reis) de temas que embora de origem açoriana (segundo estudiosos do folclore brasileiro) foram recolhidos nessas regiões.
Inclui ainda temas inéditos de vários pesquisadores açorianos e recolhas da própria MAE.
Em casa do sr Miguel Pimentel: o último ensaio antes da gravação.
Já no estúdio: verificação da afinação da viola...